A mãe vive no bebê e o bebê vive na sua mãe. E não é uma metáfora, mas algo literal. Isso revelou o estudo que manifestou que as células-tronco do leite materno se transferem ao bebê e terminam em órgãos fundamentais, especialmente o cérebro. É um fenômeno de ida e volta, já que também o bebê transfere células-tronco a sua mãe, que se hospedam em órgãos-chave, como o cérebro, o coração ou o fígado, e que ajudam a rejuvenescer e regenerar o organismo materno de cara à maternidade.
- O leite materno contém células-tronco que são capazes de cruzar o intestino e emigrar ao sangue dos bebês alimentados.
- Do sangue, viajam a vários órgãos, incluindo o cérebro, onde se convertem em células funcionais.
- Essa transferência de células-tronco do leite materno ao bebê não parece ser um acontecimento aleatório, mas um fenômeno natural que contribui com importantes atributos ao desenvolvimento.
- Futuras pesquisas devem se aprofundar em como esse fenômeno pode ajudar os bebês prematuros a sobreviver e desenvolver-se de forma óptima.
O que você pensaria se te dissessem que seu bebê contém parte do seu corpo? Literalmente. Ou que você realmente leva dentro parte do corpo do seu bebê? Por muito que pareça como uma expressão emocional de amor entre mãe e bebê, algumas das células que contém toda nossa informação genética (não a metade) são efetivamente trocadas entre a mãe e seu bebê, permanecendo vivas e ativas nos corpos do outro por pelo menos… décadas. E mesmo que isso aconteça reciprocamente durante a gravidez através da placenta, também continua em grande medida durante o aleitamento. Depois de tudo, como Barinaga belamente exclamou em 2002, o amor da mãe dura para sempre.
É fascinante quando um cientista proporciona a primeira evidência sobre um fenômeno, e ainda mais fascinante quando mais alguém o respalda de forma independente, confirmando e fortalecendo as pesquisas prévias. Essas preciosas, e até pouco tempo desconhecidas, pequenas joias do leite materno, suas células-tronco, foram estudadas mais a fundo sobre sua migração e possíveis funções nos filhos alimentados. E o resultado? Sim, de alguma maneira, conseguem atravessar o delicado trato gastrointestinal até o sangue dos bebês, até vários órgãos, incluindo o cérebro! Sigamos juntos sua viagem.
Aydin e colaboradores da Universidade de Medipol, de Estambul, Turquia, tomaram a valente decisão de se aprofundar em um campo que deixou a comunidade científica com sentimentos de assombro e entusiasmo, mas também com uma série de perguntas. Seu estudo, publicado em meios científicos em setembro de 2018, repetiu de forma independente estudos prévios de transferência de leite de ratos, confirmando a migração e incorporação das células-tronco do leite materno no cérebro dos filhotes lactantes. E quando essas células chegam ao cérebro, fazem algo assombroso… se integram nele, convertendo-se no que mais é necessário, neurônios funcionais e glia!
Já sabíamos há algumas décadas que o leite materno continha células, mas não que entre elas também houvessem células-tronco; até que certos informes revolucionários foram publicados entrre 2007 e 2012 por membros do grupos do professor Peter Hartmann na Universidade de Western, Austrália, do qual tive privilégio de ser parte. Em primeiro lugar, o Dr. Mark Cregan, deste grupo, informou da presença de células progenitoras no leite materno, aquelas células que são um pouco mais flexíveis em termos de capacidade para converter-se em outros tipos de células que a célula normal da pele ou a célula cardíaca, por exemplo.
Inspirado pelo trabalho de Cregan, em um momento decisivo no campo alguns anos mais tarde, descobrimos que o leite materno na verdade contém células-tronco, que não só são indiferenciadas (ou seja, que não estão destinadas a se converter em um tipo específico de célula), mas que são capazes de se converter em qualquer célula do corpo humano. E isso acontecia espontaneamente em pequena escala na placa de cultura, e de maneira mais forte quando essas células foram expostas ao microambiente químico correto.
Por definição, essa é uma propriedade das células-tronco que se encontram nas etapas precoces de um embrião. Mas parece que propriedades similares são compartilhadas por um grupo de elite das células do leite materno. Essas células não apenas se comportam de maneira similar às células embrionárias em termos de capacidades para se converter em qualquer célula do corpo, mas também expressam as mesmas proteínas que se sabe que são específicas das células-tronco embrionárias.
Essas descobertas foram expostas na revista Stem Cells, em 2012. Pouco depois, embarcamos em uma viagem para examinar o destino dessas células nos descendentes. Por que havia uma célula tão especial no leite materno, para começar? A parte do fato de que demonstramos que essas células se escondiam dentro da mama lactante, a pergunta de todos era: por que estão aí, no leite?
Usando um modelo de rato TdTomato, fomos capazes de demonstrar pela primeira vez que as células-tronco do leite, assim como as células imunes, sobrevivem ao intestino neonatal, migram ao sangue, e de ali viajam e se integram em vários órgãos dos filhotes lactantes, incluindo o timo, fígado, pâncreas, baço, rins e o cérebro. Aí, na verdade, parecem se converter em células especializadas de cada órgão específico.
O modelo de rato TdTomato se baseou em mães de ratos que expressavam esse gene fluorescente vermelho em cada célula do seu corpo, inclusive em suas células lácteas. Essas mães alimentaram filhotes que não o expressavam em absoluto. Portanto, qualquer célula fluorescente vermelha no corpo dos filhotes tinha que vir do leite.
O novo estudo de Aydin e colaboradores utilizou o mesmo princípio, mas em um modelo de rato diferente, no que as mães de ratos expressavam a proteína verde fluorescente GFP, enquanto os filhotes que cuidavam não expressavam em absoluto. Seu estudo agora confirma e fortalece nossas descobertas prévias, demonstrando que as células-tronco do leite efetivamente sobrevivem dentro do trato gastrointestinal dos lactantes, e desde ali se transferem ao sangue e cérebro. Ali, os sinais cerebrais microambientais específicos facilitam sua transformação em células cerebrais especializadas de dois tipos: neuronal e glial, os dois principais tipos de células cerebrais.
Células que atravessam a barreira hematoencefálica
O que faz com que esta descoberta seja ainda mais emocionante é a presença da barreira hematoencefálica. Todas a temos. Seu propósito é controlar a passagem de substâncias do sangue ao cérebro, pela óbvia necessidade de proteger esse importante órgão. Pouquíssimas células são capazes de atravessá-la. No entanto, no neonato essa barreira tem fugas, permitindo mais tráfego que o habitual em adultos. E parece que as células-tronco do leite são das poucas afortunadas que conseguem atravessá-la!
Esse fenômeno de transferência e integração de células alheias em um organismo se chama microquimeirismo, e é mais comum do que pensamos. De fato, demonstrou-se que acontece reciprocamente entre a mãe e o embrião durante a gravidez, com células embrionárias encontradas vivas e integradas dentro do cérebro da mãe e outros órgãos, muitos anos depois do nascimento do seu filho.
Por outro lado, o microquimeirismo materno, a transferência de células maternas aos seus descendentes, pode acontecer não só no útero, mas também durante a lactação. Isso foi demonstrado previamente para as células imunitárias ou células indeterminadas do leite. Agora, pela primeira vez, dois grupos independentes demonstraram isso para as células-tronco do leite materno em dois modelos de ratos. O que é fascinante é que toda a evidência até agora apoia a noção de que essas células-tronco se convertem em partes ativas e funcionais do corpo dos jovens!
E por suposto, além das células-tronco, o bebê amamentado recebe células imunitárias do leite materno. Demonstrou-se que ambos tipos de células lácteas também se encontram no timo da criança, entre outros órgãos. O timo é responsável pelo amadurecimento das nossas células imunitárias. Devido a isso, acredita-se que através da sua presença dentro do timo, as células lácteas derivadas do leite facilitam tanto a tolerância celular entre mãe e bebê, como o amadurecimento do sistema imunitário da criança.
Isso exposto, unido à evidência de que as células quiméricas persistem no descendente a longo prazo, sugere que o microquimeirismo materno na descendência não é um acontecimento aleatório, mas sim uma característica integral bem desenhada e especificamente orquestrada da lactação materna, destinada a impulsar e apoiar multilateralmente o desenvolvimento óptimo do lactante, e a protege-lo contra as doenças infecciosas.
De fato, soube-se durante muito tempo que a lactação materna oferece proteção imunitária ao bebê. O que é menos conhecido é que essa proteção é provavelmente facilitada não só pelas moléculas imunoprotetoras do leite materno (como imunoglobulinas, citocinas, etc.), mas também pelas suas células-tronco.
Agora planteio a pergunta: o que acontece com as crianças que não são amamentadas, ou que são alimentadas com leite materno que não possuem propriedades de células vivas (como o leite materno congelado ou refrigerado)? O que esses bebês perdem? Quais são as consequências a longo prazo para um bebê que não recebeu leite materno fresco? A lactação materna prolongada oferece benefícios celulares adicionais em comparação com períodos de lactação materna mais curtos?
Moles e colaboradores chamaram com muita razão o leite materno de “o sangue materno-infantil”, através do qual se entregam ao descendente múltiplos fatores ativos solúveis e celulares, como continuação ao período gestacional. Valorizamos o suficiente a importância médica desse fenômeno? Evidentemente, necessita-se urgentemente uma pesquisa mais profunda sobre esse campo para colocar luz sobre todas essas questões e abrir a possibilidade de melhorar o potencial de sobrevivência em saúde dos nossos pequenos mais vulneráveis.
Prof. Foteini Kakulas (formerly Hassiotou)
Adjunct Research Fellow
University of Western Australia
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