Depois do nascimento, em circunstâncias ideais, acontecem sofisticados processos a nível físico, emocional e neuronal, de vinculação e sincronização entre mãe e bebê, que são fundamentais para um desenvolvimento óptimo do bebê, para o vínculo entre ambos, para o desenvolvimento do cérebro social e para a saúde a longo prazo. Para que esses processos aconteçam são necessárias algumas condições básicas que a natureza provê se lhe é permitida: um parto com menos intervenção possível, preservar ao máximo o estado hormonal natural do nascimento e permitir mãe e bebê estarem juntos pele com pele depois do parto sem interferências.
No entanto, uma grande maioria de bebês nascem e são recebidos em condições bem diferentes, já seja porque nascem em entornos de medicalização inecessária do parto, ou porque são separados ao nascer. O que acontece com esses bebês? Que oportunidades têm as mães de “reparar” o que não aconteceu?
Em muitos hospitais do mundo não se está respeitando este importante momento, muitas mães e bebês são separadas ao nascer sem motivo, ou têm partos medicalizados ou com problemas que alteram este delicado momento depois do nascimento. Quais são as consequências a grande escala de entorpecer o nascimento e o contato imediato entre mãe e bebê?
– Estamos observando aumentos enormes de dificuldades de aprendizagem quando as crianças começam a escola, e uma ampla gama de transtornos emocionais e de comportamento, entre eles o autismo. Estamos vendo uma saúde débil em crianças pequenas e adolescentes. Estamos observando uma epidemia de Síndrome X: obesidade, hipertensão e diabetes. De fato, existe toda uma nova ciência chamada DOHaD: As origens do desenvolvimento da saúde e a doença (em adultos). O fato de que o nascimento tenha um impacto sobre isso é incontestável, mas também tem relação com as práticas nocivas na gravidez e em todo o período neonatal (primeiro mês).
Como um nascimento prejudicado afeta a nível comportamental?
– Um mal começo também pode afetar os processos de adaptação. A adaptação a um mundo benigno e bom se denomina “estratégia de história de vida lenta”. Quando os recursos são pobres e as coisas são difíceis, necessitamos uma “estratégia de história de vida rápida”. Com práticas nocivas de nascimento, os primeiros sinais que o cérebro recebe sobre o mundo que nasceu é que este mundo é mau, cruel, difícil. Isso conduz a mudanças cerebrais preparatórias para um mundo tão cruel. Pode fazer com que o indivíduo, como adulto, se adapte a um mundo mau, inclusive quando o mundo é bom. Ou também esse comportamento poderia inclusive fazer com que o mundo bom se torne mau, se a maioria das pessoas desenvolvem esse comportamento adaptativo.
No curso que você dá em Madri explica os incríveis benefícios de contato ininterrupto entre mãe e bebê depois do nascimento. Agora imagina uma mãe que teve um parto difícil, ou uma cesárea, ou pariu em um hospital com protocolos obsoletos, e foi separada do seu bebê durante várias horas. O que você diria a essa mãe? É possível “reparar” um ‘mal’ nascimento?
– É possível reparar um ‘mal nascimento’? Sim e não, depende. O que descrevi são as condições ideais, e devemos proporcionar um cuidado que esteja em harmonia com o previsto pela “Mãe Natureza”. Mas a mãe natureza sabe que o mundo real nem sempre é “ideal”. Então temos algo chamado “redundância”… qualquer coisa realmente importante tem planos reservas. Se o plano A não funciona, se ativam o plano B ou C. Saber isso ajuda muito. Ter uma cesárea eletiva significa que não se obtém o aumento de oxitocina necessário para ativar o início correto do cérebro. Mas o contato imediato pele com pele pode proporcionar oxitocina (plano B), assim como a sucção no peito (plano C), ajudado pela separação zero depois (plano D). O resultado pode ser bastante perfeito.
Uma cesárea como tal não tem que ser algo negativo nesse aspecto, a menos que se faça demasiado cedo ou demasiado tarde. Existe evidência científica de que afeta negativamente o comportamento materno, mas acho que a separação posterior influencia mais que a cesárea em si.
Uma ou duas coisas ruins não levam necessariamente ao trauma. É a acumulação de várias coisas ruins (o que se chama “carga alostática”). Uma advertência: alguns bebês têm “alta sensibilidade” e podem sofrer traumas antes. Algo reconfortante: outros bebês parecem ser muito resistentes e não sofrem nenhum efeito adverso. Existe um amplo espectro entre esses grupos.
As mães também são diferentes quando dão à luz: algumas têm resiliência e boas experiências que compensam uma assistência e um entorno inadequados. Mas outras mães podem nascer com feridas passadas, ou nunca foram amamentadas, e necessitam sistemas que as apoiem.
Também está o momento: várias horas não serão tão ruins como vários dias, e várias semanas é muito pior.
Então o trauma sempre pode ser reparado?
– Se fazemos o correto no momento adequado, obteremos rapidamente um bom resultado. Quando houve um retraso no primeiro contato mãe-bebê, primeiro devemos fazer que o retraso seja o mais curto possível. Depois devemos investir muito mais tempo e ser mais cuidadosos ao proporcionar apoio para conseguir um bom resultado. O trauma pode ser “reparado”? Sim, sempre. No entanto, a reparação pode ser custosa e levar muito tempo. A reparação pode ser completamente funcional, mas pode deixar cicatrizes e inclusive um funcionamento subóptimo. Mas “a perfeição pode ser o inimigo do bom…” não há necessidade de aspirar à perfeição.
No entanto, isso não é razão para proporcionar uma atenção ao parto que impeça ativamente a perfeição, para realizar práticas que já sabemos que causam sofrimento. Quanto mais distantes estejam nossos profissionais e nossos sistemas de atenção do que é um bom apoio a um bom começo, mais provável será que se expressem adaptações e vulnerabilidades.
O papel do aleitamento materno.
Sabemos os mil benefícios do aleitamento para a saúde física do bebê e de sua mãe. Você poderia explicar como influencia no desenvolvimento cerebral, psíquico e social?
– O aleitamento materno contém nutrientes que satisfazem as necessidades do corpo e do cérebro, mas vai além. O cérebro é um “órgão social”, pelo que o aleitamento materno alimenta a sociabilidade do cérebro. E faz isso a muitos níveis, começando com experiências sensoriais puras, de uma maneira que faz com que os circuitos no cérebro se formem e funcionem. O processo estabelece no bebê uma atitude de confiança básica diante da vida, baseada no fato de que sua mãe sempre satisfaz suas necessidades. Depois vem a interação sensorial bidirecional, que é o tecido da socialização. A conexão emocional é o ingrediente essencial. Isso alimenta a sensibilidade para “conhecer a mente do outro”, é a base da empatia e a fonte da moralidade. Certamente, a empatia e a moralidade podem chegar a algumas pessoas que nunca amamentaram, mas é muito mais fácil e mais natural com o aleitamento materno.
Agora, imagina uma mãe que mesmo desejando amamentar encontrou muitos problemas, não recebeu a ajuda adequada e não pôde amamentar. O que você diria a essa mãe? Existe alguma maneira de compensar uma lactação curta ou inexistente?
– Não amamentar é uma perda. Essa mãe que desejava amamentar merece empatia e compreensão pelos seus sentimentos sobre essa perda. Mas para seu bebê, a perda está longe de ser total, e os mecanismos de compensação estão disponíveis, como expliquei anteriormente sobre a redundância: são necessários o plano B e o plano C. Mas requer uma reflexão cuidadosa para assegurar o contato prolongado que implica a alimentação ao peito, e assegurar-se de que seja prazeroso e divertido para o bebê e a mãe, não apenas uma tarefa ou um peso. E o ambiente sensorial da lactação materna pode proporcionar-se muito bem mediante a separação zero, o contato prolongado de pele com pele durante algumas semanas enquanto ambos o desfrutem, e depois disso levar o bebê no colo durante muitos meses. E ademais, cantar muito com o bebê e contar histórias. Einstein disse: “se quiser uma criança inteligente, leia histórias. Se quiser uma criança muito inteligente, leia muitas histórias”.
Entrevista realizada por Isabel Fernández del Castillo